Leitura de textos: "Livro do desassossego" de Fernando Pessoa

 Link áudio texto

"Livro do desassossego" de Fernando Pessoa

112.

"Nunca amamos alguém. Amamos, tão-somente, a ideia que fazemos de alguém.

 É um conceito nosso - em suma, é a nós mesmos - que amamos. Isto é verdade em toda a escala do amor. No amor sexual buscamos um prazer nosso dado por intermédio de um corpo estranho. No amor diferente do sexual, buscamos um prazer nosso dado por intermédio de uma ideia nossa. O onanista é abjeto, mas, em exata verdade, o onanista é a perfeita expressão lógica do amoroso. É o único que não disfarça nem se engana.

As relações entre uma alma e outra, através de coisas tão incertas e divergentes como as palavras comuns e os gestos que se empreendem, são matéria de estranha complexidade. No próprio ato em que nos conhecemos, nos desconhecemos. Dizem os dois "amo-te" ou pensam-no e sentem-no por troca, e cada um quer dizer uma ideia diferente, uma vida diferente, até, porventura, uma cor ou um aroma diferente, na soma abstrata de impressões que constitui a atividade da alma.

Estou hoje lúcido como se não existisse. O meu pensamento é em claro como um esqueleto, sem os trapos carnais da ilusão de exprimir. E estas considerações, que formo e abandono, não nasceram de coisa alguma - de coisa alguma, pelo menos, que me esteja na plateia da consciência.

Talvez aquela desilusão do caixeiro de praça com a rapariga que tinha, talvez qualquer frase lida nos casos amorosos que os jornais transcrevem dos estrangeiros, talvez até uma vaga náusea que trago comigo e me não expeli fisicamente...

Disse mal o escoliasta(1) de Virgílio. É de compreender que sobretudo nos cansamos. Viver é não pensar."

(1)O escoliasta é responsável por interpretar os textos antigos

Pessoa, Fernando. Livro Do Desassossego. 2a ed., Jandira, SP, Ciranda Cultural, 2019, p. 79.






Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Leitura de poesia: "Nada explica, nem consola"

Textos que já enviei: por que se presenteia o outro?